Há filmes que escavam mais fundo do que gostaríamos, que expõem, com crueza, verdades que tentamos esconder. "A Substância" é um desses filmes. Ele me atravessou com uma força brutal, trazendo à tona uma dor que conheço bem: a dor de parir o que não se é mais. De olhar para si mesma e ver que a pele, as formas, a expressão, já não se encaixam na imagem que o mundo deseja.
Essa dor, essa ruptura, não é apenas uma questão estética. Ela é psíquica, é visceral, é uma ferida que lateja cada vez que tentamos nos encaixar na moldura que a sociedade insiste em nos impor. O filme revela de maneira grotesca como a busca pela eterna juventude, pela aparência inatingível, não é nada mais do que uma ilusão perigosa e destrutiva. Mas não é apenas sobre manter-se jovem; é sobre ser desejável, ser um objeto de entretenimento, um troféu que confirma e valida o olhar de quem observa.
O que "A Substância" mostra, e o que me assombra tanto, é como a imagem feminina é constantemente forjada e explorada para o prazer alheio. Os homens no filme são como vultos que flutuam, ora observando, ora possuindo, mas nunca verdadeiramente enxergando. Eles transformam a mulher em uma substância a ser moldada, consumida e descartada. Uma ilusão do desejo, eternamente renovada e eternamente vazia.
E é assim que crescemos, intoxicadas pela ideia de que nossa beleza é nosso maior poder, e que devemos usá-la, moldá-la, e não questionar. Que devemos nos sentir gratas quando somos vistas, desejadas, como se a vida de uma mulher se resumisse a ser um espetáculo para o olhar alheio. Eu lembro dos olhares que atravessaram meu corpo ao longo dos anos, como lâminas invisíveis, e lembro da tentativa de desviar, de evitar, de me esconder. Cada vez mais, comecei a escolher minhas roupas não pela liberdade de ser, mas pela necessidade de não me sentir invadida, de não ser reduzida a um corpo que deve servir ao desejo de alguém.
Mas o que fazer quando não se é mais aquela imagem que desejam ver? Quando os traços mudam, quando as marcas aparecem e o corpo conta a história de uma vida que não pode ser apagada? O filme nos confronta com essa questão de forma violenta, expondo o quão grotesco é tentar ser algo que não se é. A tentativa desesperada de congelar o tempo, de manipular o corpo, revela uma cultura que não sabe lidar com o envelhecimento, que vê na mulher velha uma ameaça, uma lembrança incômoda de que o tempo é inexorável e que todos, inevitavelmente, mudarão.
Essa tentativa de "parir o que não se é mais" é uma forma de autoviolência. A dor de tentar manter uma imagem que já não reflete quem somos intoxica não só a nós, mas a todos ao nosso redor. É uma anestesia emocional que impede de viver plenamente, de sentir profundamente. E no meio disso, as mulheres são ensinadas a não reclamar, a não resistir, a usar sua aparência como poder, mesmo quando esse poder é uma prisão.
A sociedade idolatra a juventude como uma divindade caprichosa e exige que as mulheres sacrifiquem sua essência para manter essa aparência. Mas o sacrifício nunca é suficiente. O corpo envelhece, as rugas surgem, e cada linha é um testemunho de resistência, de existência. E ainda assim, somos levadas a acreditar que essas marcas são defeitos que precisam ser corrigidos, apagados, ocultados. E assim, a própria substância da nossa vida é diminuída, achatada, distorcida.
Eu vejo neste filme um espelho distorcido do que muitas de nós vivemos diariamente. Uma tentativa de controle que nos consome, uma ilusão de poder que nos enfraquece. Cada olhar que finge admiração, mas carrega consigo o peso do julgamento, é um lembrete de que a nossa imagem, a nossa presença, não é para nós. É para o outro. E é essa violência silenciosa que atravessa gerações, nos ensinando a nos esconder, a nos dobrar, a parir algo que já não somos e que nunca deveríamos ter sido.
A dor de parir o que não se é mais é uma dor que muitos ignoram, mas que pulsa a cada vez que olhamos no espelho e nos perguntamos: "Quem sou eu, além dessa imagem?" A resposta não está nas substâncias que prometem juventude eterna, nem nos sorrisos que escondem a insegurança. A resposta está em aceitar a verdade da nossa existência, na coragem de se olhar com honestidade e compaixão, e na recusa de se render a uma cultura que despreza o envelhecimento como se ele fosse uma falha.
"A Substância" nos faz essa pergunta incômoda: Até quando vamos permitir que nossa essência seja moldada pelos desejos dos outros? Até quando vamos nos permitir ser consumidas por essa ilusão? Talvez a verdadeira libertação não esteja em parecer eternamente jovem, mas em abraçar a beleza que surge quando nos permitimos simplesmente ser.
Teria muito mais a dizer, falar, escrever... O filme realmente me fez cavar profundo o que nós mulheres, ou eu, estamos vivendo há muitas gerações... Mas por ora, fico por aqui... Espero que meu trabalho cuidadoso com a autoimagem movimente lugares de aceitação em um mundo tão complexo e de difícil digestão.
Fernanda Preto Mariano
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